terça-feira, abril 22, 2008

"Um dia os timorenses vão descobrir-me", diz escritor Luís Cardoso

** Pedro Rosa Mendes, da agência Lusa, em Díli **
(Serviço também disponível em áudio em www.lusa.pt)

Díli, 21 Abr (Lusa) - O escritor timorense Luís Cardoso, em pé junto ao mar de Díli, olha para Ataúro e recorda a ilha onde passou a infância, um sítio e um tempo que ficaram o seu "paraíso".

"Vejo perfeitamente naquele montículo, o Manucoco, as muitas viagens que fizemos lá em cima. Tem uma visão fabulosa sobre a cidade de Díli e sobre tudo o que está à volta", relata Luís Cardoso à agência Lusa.

Luís Cardoso participa, em Díli, na terceira Feira do Livro em Português, onde apresentou sábado passado o seu último romance, "Requiem Para Um Navegador Solitário", editado em 2007 em Portugal.

"Depois, aquela parte mais redonda, que quase termina como se fosse umas nádegas, é Makadadi, que quer dizer 'chumbo' em tétum. Em Makadadi falam o rangungo, um falar muito diferente das pessoas de Makili", outra aldeia da ilha.

"Na zona de Bikeli, não sei se ainda existe, havia uma comunidade protestante muito grande. Formavam uma comunidade muito fechada. Tinham o culto dos rabuta - fechavam completamente os olhos para rezar, ao contrário dos católicos romanos que rezavam de olhos abertos", prossegue o escritor.

"De vez em quando, víamos para o outro lado de Díli, da Areia Branca, passar um carro que levantava poeira. Era muito de vez em quando e nós dizíamos: 'Olha, lá vai um carro!'. Em Ataúro não havia carros…"

Na Ataúro da infância de Luís Cardoso, "existia um aeródromo e no meio havia um buraco, onde se lançava uma pedra. Via-se que a pedra demorava um tempo a assentar".

"Dizia-se que, durante a noite, vinha uma sereia e ficava lá sentada. Muita gente viu. Eu não, porque os meus pais não deixavam eu ir de noite. Mas quando lá passava espreitava por lá. Dizem que o aéródromo agora é um campo de milho".

Luís Cardoso foi para Ataúro com um ano e viveu lá até aos seis anos de idade. Nunca mais lá voltou.

"Tenho um certo receio de ir a Ataúro porque pode não estar como eu recordo o meu paraíso. Como diz o (Jorge Luís) Borges, todos os paraísos são paraísos perdidos. Se calhar é isso que eu vou encontrar, o meu paraíso mas paraíso perdido", afirma o escritor à Lusa.

O escritor pretende aproveitar a viagem a Timor-Leste para regressar ao pequeno "paraíso" onde o seu pai era enfermeiro.

"Quero enfrentar, quero ir lá, ao encontro. Fui para lá com um ano, no momento em que não percebia as coisas. Quando me apercebi quem eu era, estava em Ataúro", explica o escritor.

"Foi lá que aprendi a escrever. O meu professor ainda está vivo".

Luís Cardoso recorda que, na escola, escrevia as redacções sempre em duas versões. Uma para ele, outra em nome do colega Vasco, que lhe pagava em pão ("com manteiga!") porque o pai tinha uma padaria.

Escrever em português "foi uma situação adquirida em Ataúro", explica Luís Cardoso.

"Se tivesse escrito primeiro em tétum, faria o resto da minha vida através do tétum, mas o momento em que me vi a escrever foi em português. Depois, obviamente passou a ser uma escolha", explica o autor, que define independência como "a possibilidade de fazer escolhas", como o sistema económico ou a língua oficial.

"Todas as línguas são bem-vindas. Se os timorenses falarem mais línguas têm mais acesso a muitas coisas. A guerra de línguas é fictícia, não existe", sublinha o escritor.

"Se as duas línguas oficiais de Timor são o tétum e o português, o Estado deve fazer tudo para as implementar. Se não, retira-se da Constituição, para não estarmos a enganar ninguém", acrescenta Luís Cardoso.

Publicado em Portugal e em português, Luís Cardoso concorda que é, em grande medida, escritor de um país que não lê.

"Mas um dia os timorenses vão descobrir-me. É uma questão de educação", salienta o escritor.

Ataúro, onde Luís Cardoso "tinha espaço para correr, foi uma coisa de liberdade".

"No momento em que dei conta de mim, eu era livre. Depois, quando deixei a ilha, passei a depender das circunstâncias. Passei a ir atrás do meu pai, depois para (o colégio de) Soibada. O melhor momento de mim próprio foi a infância", afirmou na entrevista à Lusa.

Esta semana, depois de encerrar a Feira do Livro, Luís Cardoso pretende ir a Ataúro.

"Não há ninguém à espera. Conheço os lugares todos, os cheiros. Vai haver uma grande lacuna. Os meus companheiros de infância não vão estar lá à espera. Só o Vasco, que está doente".

Ao paraíso de Luís Cardoso chegavam viajantes de muitos sítios, a quem se perguntava e que devolviam perguntas.

"Viajante é quem trazia novidades para o mundo isolado que era a minha infância na ilha de Ataúro", explica o escritor, que ficcionou a sua última obra em torno do aviador e tenista francês Alain Gerbault, que fez uma viagem de circumnavegação e acabou por morrer em Díli, em 1941.

O que interessou Luís Cardoso nessa figura foi "a viagem" e foi através de um poema do português Rui Cinatti, "Visão", que primeiro se apaixonou pelo navegador.

"Há poucos navegadores solitários. Extinguiram-se. Mas fazemos a nossa viagem interior. Posso ir ao deserto dentro de mim", conta Luís Cardoso.

Em Oeiras, o seu lugar de escrita, Luís Cardoso mantém um cordão umbilical com Timor-Leste.

"Estava a escrever e deixei de escrever e parei quando soube dos acontecimentos de 11 de Fevereiro", com os ataques ao Presidente da República e ao primeiro-ministro, conta Luís Cardoso.

O escritor analisou recentemente a situação política numa crónica chamada "A Páscoa dos Galos".

"Os protagonistas em Timor-Leste são os galos. Levamos para a política a tradição da luta de galos, em que apostamos num ou noutro. Há uma questão de personalidades que durante este tempo se foram confrontando. Os galos são figuras de muita vaidade", afirma o escritor timorense.

Nessa crónica, o 11 de Fevereiro é lido segundo o calendário religioso: Paixão, Morte e Ressurreição.

"As colonizações são violentas, as descolonizações são violentas também", cita de memória o escritor timorense.

"A violência vai-se sua atenuando com o tempo, surgindo certos picos até um momento em que se esgota completamente. Acredito nisto", conclui o escritor sobre o processo timorense.

Lusa /fim

2 comentários:

Anónimo disse...

Entao o Luis Cardoso esteve a estudar em Soibada e nao sabe que rezar de olhos fechados ou de olhos abertos nao e sinal de distincao entre catolicos e protestantes. E apenas uma questao de opcao

Anónimo disse...

TAL COMO OS GALOS AS 4.30 DA MADRUGADA, OS PROTESTANTES CANTAVAM COM OS OLHOS FACHADOS, PORQUE SABIAM A ORACAO DE COR.
ERAM "MANU MEAN" COM O FUNO TIME
DAS 3 DA TARDE.

UM ABRACO

MAU DICK

Traduções

Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.

Obrigado pela solidariedade, Margarida!

Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006

"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
 

Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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