Expresso
10.06.2006
Estão quietos, à espera. Argumentam que não querem uma guerra civil, mas não aceitam outra condição para voltarem das montanhas senão a demissão e o julgamento do primeiro-ministro Mari Alkatiri, que acusam de ter mandado matar civis inocentes
Timor é um território tortuoso. As distâncias são mais longas do que parecem e basta sair de Díli para perceber que só há um caminho de ida e volta para chegar a qualquer lugar. As estradas serpenteiam montanhas atrás de montanhas, numa rotina extenuante pela floresta contínua de palmeiras e árvores gigantes com as suas copas em forma de nuvens chatas, fazendo sombra às plantações de café. Foi esta barreira sobre-humana que salvou os timorenses de uma chacina total pelos indonésios, mantendo acesa a luta dos guerrilheiros das Falintil. Agora que voltou a ser usada, quatro anos depois da independência, a montanha está a tentar salvar novamente os timorenses. Desta vez, deles próprios.
É uma história complexa, que exige um prólogo: a 28 de Abril, os militares leais ao general Taur Matan Ruak e à hierarquia das FDTL (as Forças Armadas criadas em 2001 com a incorporação de antigos guerrilheiros das Falintil e de novos recrutas) envolveram-se em confrontos com 600 desertores do Exército e centenas de apoiantes civis que se manifestaram ao longo de toda essa semana em frente ao Palácio do Governo.
Os desertores exigiam que fossem investigadas algumas altas patentes do Exército (os coronéis Lere Anan e Falur), acusadas de discriminar os soldados loromonos, oriundos dos concelhos mais ocidentais do país, por nem eles nem ninguém das suas famílias terem pegado em armas para lutar contra o regime de Jacarta.
Nessa sexta-feira à tarde, com a intervenção das FDTL sobre os manifestantes desarmados, começou a revolta. Desde então, vários grupos de militares loromonos e também de polícias rebeldes foram refugiar-se em locais considerados seguros, no interior do país, perto das terras onde nasceram. Outros incidentes, ao longo do mês de Maio, agravaram o clima de tensão. E aquilo que durante os últimos três anos parecia apenas um atrito interno dentro dos quartéis extravasou por todos os lados, numa animosidade agressiva que corre o risco de se transformar num ódio difícil de sanar entre vizinhos - não importa se civis ou militares.
Na capital, os soldados das FDTL estão retidos nos quartéis, sob a vigilância das forças internacionais, mas os conflitos entre os civis nos bairros são inevitáveis. Na prática, é a única cidade no país onde lorosaes (oriundos dos distritos de leste: Baucau, Lospalos e Viqueque) e loromonos (oriundos dos outros distritos, representando dois terços da população) coabitam. Estão demasiado próximos para não se agredirem. E é por isso que as coisas estão tão calmas nas montanhas: lá, eles não se misturam. O que não quer dizer que, à distância, não sintam o conflito.
São precisas quase duas horas de carro para ir até Gleno, no concelho de Ermera, a 40 quilómetros de Díli. De vez em quando há patrulhas de soldados australianos e a esquadra local continua a funcionar, mas os australianos não estão a deter ninguém e os polícias são todos loromonos. Não se metem, é gente amiga. Ou família.
No mercado ao ar livre qualquer vendedor diz onde está o cabecilha dos 600 desertores conhecidos por peticionários (por terem feito uma petição em Janeiro a Xanana Gusmão, exigindo a investigação dos tais dois coronéis e do próprio general Matan Ruak). O tenente Salsinha e duas ou três dezenas dos seus homens ocuparam um antigo orfanato abandonado. É ali que dormem, sem vidros nas janelas, sem luz ou água. Vestem-se à civil e, aparentemente, não têm armas.
Nas paredes do orfanato, alguns soldados reproduziram o que chamam «massacre de Raikotu», desenhando militares armados das Falintil a disparar sobre mulheres e crianças. Todos os rebeldes falam desse momento: a tarde de sexta-feira, dia 28 de Abril, quando ao voltarem da manifestação no Palácio do Governo para Raikotu, no limite ocidental da cidade, já depois do aeroporto e muito perto do quartel-general de Matan Ruak, os peticionários dizem ter sido atacados pelas costas por um batalhão de 105 homens do coronel Lere Anan, o número dois das Forças Armadas. Em Díli, nos bairros loromonos, fala-se de 50 a 60 mortos civis. Os peticionários confessam que não sabem quantos poderão ter sido. «Começámos a dispersar e perdemo-nos de vista uns dos outros», recorda um dos peticionários, Augusto Soares, de 24 anos. «Mas vimos muitos inocentes a serem baleados». Os desertores que se concentraram em Gleno com o tenente Salsinha levaram três dias para fazer o caminho a pé. Sabem apenas que as outras centenas de colegas militares foram para as suas terras, espalhando-se pelos concelhos loromonos do país, mas ainda não têm notícias deles.
No hospital nacional de Díli, e de acordo com o director António Caleres Júnior, nesse dia e no dia seguinte deram entrada nas urgências quatro mortos (que foram devidamente identificados ao EXPRESSO, sendo que houve uma quinta vítima internada que viria a falecer duas semanas depois) e mais de 60 feridos.
Todos eles civis e todos eles baleados. «Era suposto terem ficado hospitalizados uma ou duas semanas pelo menos, mas naquele fim-de-semana as famílias vieram buscá-los à pressa». Estavam com medo dos militares das Falintil. Metade dos feridos encontravam-se em estado grave. «É possível que, por falta de assistência, parte deles tenha morrido. Não sabemos».
A dois quilómetros do orfanato ocupado pelos peticionários, um outro grupo de militares acantonou-se numa casa modesta com dois ou três quartos e alguns anexos. Ao contrário dos peticionários, estão armados e não se consideram desertores. «Eu e o major Tara saímos dos quartéis no dia 3 de Maio e viemos com 32 homens para as montanhas por solidariedade, para defender o povo e os nossos colegas loromonos», explica o major Marcos Tilman.
Mais tarde chegaram também 21 polícias civis loromonos, assim que os conflitos dentro da Polícia Nacional de Timor Leste estalaram entre etnias, num contágio em cadeia. Reunidos em Ermera, reorganizaram-se e estão agora a viver como uma unidade militar normal, com o organigrama hierárquico pendurado na porta da casa, postos de vigia montados e uma escala de turnos.
Sentem-se tranquilos e, de facto, não parecem correr grandes riscos no seu aquartelamento improvisado. A população está do lado deles e a entrada em Ermera é detectada com muita antecedência, dando-lhes tempo de reacção para se esconderem no mato. Sabem das notícias sobre a remodelação do Governo em Díli, depois do chefe da diplomacia Ramos-Horta ter também assumido a pasta da Defesa, mas isso é manifestamente pouco para os rebeldes. «O primeiro-ministro tem de se demitir e de se submeter ao tribunal internacional. Ele é um criminoso porque deu ordens para disparar sobre pessoas inocentes», argumenta o major Marcos.
No dia 7 de Maio, um terceiro grupo ainda veio reforçar as forças rebeldes: o major Alfredo Reinaldo, comandante da polícia militar, com mais 17 homens, também armados e também não se assumindo como desertores. A coordenação operacional dos três grupos foi-lhe passada para as mãos. Colega de carteira dos majores Marcos e Tara no curso para graduados das Forças Armadas em 2001, é o oficial com maior experiência de comando.
Um novo episódio obrigou, no entanto, Alfredo a mudar de poiso para a pousada de Maubisse. No dia 23 de Maio, na mesma altura em que os majores Marcos e Tara reuniam com o ministro Ramos-Horta em Suai, não muito longe de Ermera, acertando com ele as condições mínimas para começar um diálogo com o general Matan Ruak, o major Alfredo atacou uma coluna das FDTL, matando dois militares. E a conversa parou ali. Dois dias depois, alguns elementos das Falintil retaliariam, matando em Díli nove polícias loromonos desarmados.
Em Maubisse, onde está vigiado por um posto de controlo das tropas australianas, Alfredo continua a ser o líder militar máximo dos rebeldes e está rodeado pelo seu pequeno séquito de homens armados. O EXPRESSO viu-o reunido no domingo passado com Ian Martin, o enviado especial do secretário-geral da ONU para mediar o conflito, com quem trocou sorrisos. Mas as suas certezas, meia hora depois, pareciam continuar inabaláveis: «Não acredito em nada do que Alkatiri diz. Não há diálogo enquanto ele for primeiro-ministro».
Muitos jornalistas estrangeiros vêm desiludidos de Ermera e Maubisse com a falta de aparato dos rebeldes, sem imagens que encham o olho na televisão, mas foi precisamente assim que as montanhas enganaram os indonésios. Os caminhos sinuosos pelas florestas altas de Timor parecem esconder sempre mais do que mostram.
Reportagem de Micael Pereira (texto e fotografias), enviado a Timor
sábado, junho 10, 2006
Os novos rebeldes da montanha
Por Malai Azul 2 à(s) 17:49
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Traduções
Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006
"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
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