segunda-feira, março 17, 2008

Lições de História

H. Correia deixou um novo comentário na sua mensagem "Reinado to live on as vivid figure in Timor folklo...":

Pode ser eficaz como chamariz para vender jornais, mas é no mínimo bizarra e errónea esta comparação de Reinado com D. Boaventura de Manufahi e a luta deste com a luta de Xanana Gusmão contra a invasão indonésia.

Acho que já chega de falar de Reinado. Que descanse em paz, se os vivos o deixarem.

Quanto a D. Boaventura, foi um guerreiro, como sempre foram os timorenses. Mas o facto que o tornou famoso foi a sua revolta contra Portugal, o que mostra bem como isso era algo fora do vulgar, mesmo naquela época. Quando os primeiros portugueses puseram pé em Timor, esta ilha já era um mosaico de dezenas de reinos unidos ou separados conforme as conveniências de cada momento, alternando os períodos de paz com os de guerra, em que as cabeças dos derrotados eram impiedosamente cortadas.

Há cem anos, Portugal era apenas mais um actor entre tantos outros e nem por isso o mais importante, dada a quantidade escassa dos seus representantes em Timor e, consequentemente, a sua escassa influência. O próprio Sengstock fala de “a colonial administration whose true authority projected little outside of Dili.” As atenções bélicas dos reinos viravam-se, por isso, preferencialmente para os reinos rivais. Estas tendências, a célebre “Funu” que dá o título ao livro de Cal Brandão, é elemento intrínseco timorense e fundamental para entender o que foi a resistencia à ocupação indonésia, as milícias de 1999 e até muitos dos fenómenos que ainda hoje perduram no Timor-Leste independente.

Como em muitos casos da História, o mito sobreviveu - e sobrepôs-se - ao homem. Portugal também tem o seu mito, D. Sebastião. Como Manuel Amaral escreve no seu “Portal da História”, D. Sebastião “Cresceu na convicção de que Deus o criara para grandes feitos”. Assim se lançou numa empresa suicida contra a África moura, deixando o reino arruinado, sem rei e a meio-caminho de perder a sua independência, o que não tardou muito.

A sua curta história acabaria aí, pouco depois de ter começado, se não fosse o poder do mito popular que o transformou no célebre "Desejado", apelido por que passou a ficar conhecido até aos dias de hoje, não só em Portugal como também no Brasil. O facto de o seu corpo nunca ter sido encontrado só veio reforçar a convicção popular de que ele ainda está vivo e regressará numa manhã de nevoeiro.

No seu excelente trabalho “As Raízes do Sebastianismo”, em http://www.klepsidra.net/klepsidra2/sebastianismo.html, Rodrigo Silva sintetiza muito bem o conceito sebastiânico: “É a tragédia, o sofrimento e a esperança que alimentam o sebastianismo durante séculos, na angustia de um povo e a crença no porvir.”

Talvez D. Boaventura seja o D.Sebastião timorense, ou a versão timorense do sebastianismo. Também o povo timorense, na angústia de tanto sofrimento, precisa dos seus mitos, crendo que eles o ajudarão a conseguir libertar-se um dia. Chamem-se eles D. Boaventura, Xanana ou até Ramos Horta.

O mito existe e não serei eu a pô-lo em causa. Mas, tal como a realidade histórica do D. Sebastião é tão modesta e frustantemente simples, comparada com a aura dourada do seu mito, o mesmo acontece com a realidade de D. Boaventura. Segundo os historiadores, ele foi apenas um homem de carne e osso. Morreu na prisão, depois de capturado pelas autoridades. E aquilo que, romanticamente, o Sr. Sengstock descreve como “Surrounded and besieged on a mountain top, Boaventura led a courageous breakout. On horseback at the head of his warriors he plummeted towards Portuguese lines in a charge that one awestruck historian described as "a great avalanche down the side of the mountain", é na realidade a descrição da fuga de D. Boaventura, que assim abandonou 3000 apoiantes à mercê do inimigo. Aliás, o próprio Sengstock reconhece isso, quando acrescenta que “The warrior king escaped, but most of his estimated three thousand followers did not.”

Se por um lado D. Boaventura pode ser visto como aglutinador de alguns reinos contra as autoridades portuguesas, o inverso também é possível, pois havia outros tantos reinos, ou mais, do lado de Portugal. Quando Sengstock diz que “the military odds were against him” e fala das “portuguese lines” que cercavam a montanha onde resistiam as forças de D. Boaventura, na realidade está a falar da superioridade numérica das tropas dos reinos leais a Portugal, visto que nessa altura não deviam existir mais do que umas escassas centenas de brancos em Timor. Foram esses soldados desses reinos, e não propriamente os portugueses, que derrotaram D. Boaventura.

Os ideais de D. Boaventura não tinham nada de “nacionalistas”, conceito muito recente entre os timorenses, e ainda mal digerido por muitos. Primordialmente um produto da colonização portuguesa, que lhe dá uma relativa unidade, é com a aglutinação em volta da Igreja e contra o invasor indonésio que o nacionalismo timorense fica definitivamente consolidado. A esta conclusão chegou Geoffrey Gunn após anos de estudo, que culminaram na sua impressionante obra “Timor Lorosae: 500 Anos”. Prova da juventude desse nacionalismo é a indelével diversidade etno-linguística dos timorenses, reminiscência dos antigos reinos. Duvido que o mito de D. Boaventura seja tão forte, por exemplo, em Lautém, Baucau, Bobonaro ou no Oecusse, regiões que poucas afinidades têm com o antigo reino de Manufahi.

Para terminar, já neste blog me referi aos muitos factores que catalizaram a revolta de D. Boaventura (ou melhor dizendo, do reino de Manufahi) em 1911 e que ficam normalmente esquecidos: num protectorado português como era Timor, em que a maioria dos liurais aceitara prestar vassalagem ao liurai português, a revolução republicana de 1910 foi uma traição. Os timorenses não aceitaram de bom grado a mudança da bandeira portuguesa e muito menos a abolição do regime monárquico, que encaixava na perfeição no seu sistema ancestral de organização social, fortemente estratificado e dominado pelos liurais e pelos datos, estrato social equivalente à nobreza. Tudo isso foi posto em causa pelo novo regime republicano.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pela perspectiva abordada que, para além de ser objectiva em termos de históricos, também se fundamenta em termos antropológicos da realidade passada e presente em Timor.

Pouco estudado está, contudo, o grande "estilo" em Funare de 1896 (?) e suas consequências como génese de uma bipolorização dos mais importantes reinos timorenses: no apoio ou na afronta à administração portuguesa e o reflexo posterior nos vários movimentos bélicos ou não, contra Portugal, emergindo em 1974 com várias nuances nos partidos Fretilin, UDT e Apodeti e suas derivantes.

Anónimo disse...

Olha o presuncoso que julga saber mais da historia de Timor do que os proprios timorenses. Tens algum problema com o nosso verdaeiro heroi-Alfredo? Se tens e porque es um ignorante que nao sabes o significado de um heroi. Pois ele foi um Heroi e depois de morto ainda e mais um Heroi porque pelo menos perdeu a vida, lutando e buscando por aquilo que acreditava: Verdade e Justica. Entendes? se nao entendes, penses mais a fundo o que quer dizer Justica?- e a igualdade de direitos para todos sem qualquer discriminacao, sem qualquer favoritismo. Dai, a balanca e o simbolo da Justica e do equilibrio, menino de cabeca meia vazia

Traduções

Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.

Obrigado pela solidariedade, Margarida!

Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006

"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
 

Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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