Expresso - Edição 1807 de 16.06.2007
Pedro Rosa Mendes, em Díli
Um filho é uma questão cutânea: os anos que o sangue nos cresce fora da pele. Mais ainda no caso de Benvindo e de Shalih. A biografia de ambos começa nas cicatrizes do pai - e, um dia, fundiu-se nas suas rugas.
Por onde começar? Era uma vez, em 1988, um comandante da guerrilha que é ferido pelo Exército indonésio (TNI) nas montanhas de Timor.
Ou assim: era uma vez, em 2003, um arquitecto javanês que recebe a visita de dois timorenses que ele não conhece mas que já sabe quem são. Trazem nas mãos a fotografia de uma criança.
Ou também assim: era uma vez, há dez dias, um tenente-coronel das Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste (F-FDTL), numa delegação pequena de um país pequeno, escutando o hino do antigo inimigo sob o grande candelabro da grande sala do grande palácio, na grande capital do grande país que, durante 24 anos, provocou à sua gente um enorme sofrimento.
Ou ainda assim: era uma vez, há quatro dias, João Miranda Descart ‘Aluc’, chefe da Casa Militar do Presidente José Ramos-Horta, em Díli, com uma chávena de café e três retratos espalhados na mesa. Olhando para as fotos, o ex-comandante da guerrilha, o actual tenente-coronel João Miranda Descart ‘Aluc’, afirma: “Trazê-lo de volta seria uma ingratidão”.
Os três retratos são de Benvindo, o quarto filho de João Miranda, “com cerca de quatro anos, com cerca de 12 e com cerca de 17”.
Em 1988, João Miranda Descart, o comandante ‘Aluc’, chefiava a 1ª Unidade da guerrilha timorense no leste do país, “para lá da estrada Laga-Baguia”. Em Março, ‘Aluc’ foi atacado e ferido em combate a sudeste de Lospalos. Uma bala de uma metralhadora M16, calibre 5,56, furou-lhe a perna direita entre o joelho e o calcanhar.
“Resolvi soltar a minha esposa e o Benvindo”. “Soltar”: arranjar que a mulher e o bebé entrassem na vila de Lospalos com a ajuda da rede clandestina para entregar a criança aos cuidados do avô, pai de ‘Aluc’.
O comandante indonésio do Batalhão 745, estacionado em Lospalos, soube que um bebé tinha sido entregue na vila. O inimigo directo de ‘Aluc’ chamava-se Suriadi e “tinha dois filhos, mas estavam ambos a estudar em Java. A mulher dele queria arranjar uma criança que estivesse com eles em Lospalos”. Suriadi bateu à porta do velho e levou a criança, “mas uma semana depois, voltou a casa do meu pai e disse-lhe: “sei que o bebé é filho do teu filho mas tu não tens condições para o criar. É melhor ele ficar comigo e tu podes ir visitá-lo e brincar com ele quando quiseres”.
Uma pista descoberta por acaso
A mãe de Benvindo “desceu à vila em 1990”. No ano seguinte, conseguiu localizar e telefonar ao comandante Suriadi (entretanto colocado em Bali) através de outro oficial das TNI em Lospalos.
“Suriadi ofereceu-se para pagar uma passagem de avião à minha mulher, para ela visitar o Benvindo em Bali. Só que ela não falava bem a língua e não percebeu o que lhe disseram. Apenas pediu uma fotografia do Benvindo, o número de telefone e o endereço de Suriadi”.
No mato, a guerra continuou. “Em 1999, durante a violência das milícias, tudo foi comido pelo fogo e a minha mulher perdeu a morada e o telefone do filho”. Sobrou “a chapa com a fotografia do Benvindo”.
A pista de Suriadi e Benvindo foi uma vez mais reencontrada, por acaso, em 2003, através de um primo timorense de ‘Aluc”, que integrou o Batalhão 745 sob comando do sucessor de Suriadi, um coronel casado com uma timorense.
Em Setembro desse ano, ‘Aluc’ e a mulher viajaram para Jacarta. Levavam na mão a cópia da fotografia que Suriadi tinha enviado para Lospalos em 1991.
Finalmente, o reencontro. Benvindo Azé Descart crescera não como timorense, fataluco e católico mas como indonésio, javanês e muçulmano. O quarto filho do comandante ‘Aluc’ chama-se Shalih Rahman. É um jovem arquitecto em Jacarta e vai prosseguir estudos na Austrália.
“Benvindo sabia há dez anos que Suriadi era o pai adoptivo. Um dia, perguntou a uma criada lá de casa e ela contou-lhe a verdade”.
“A vida de Benvindo é em Jacarta. Ele sempre foi tratado como filho. Eu disse isso à minha mulher”.
Benvindo ou Shalih, ou Benvindo e Shalih, visitaram Timor-Leste em Setembro de 2004. Foi a Lospalos. Trouxe o pai adoptivo.
‘Aluc’ mexe de novo a chávena. “A propaganda indonésia durante a ocupação dizia que nós e eles éramos irmãos, que tínhamos a mesma cor. Hoje é que isso é verdade”.
Suriadi morreu de ataque cardíaco em 2005. ‘Aluc’ foi às exéquias. Entardece em Díli e o sol põe uma toalha sépia sobre os três retratos de Shalih.
E o que significa ‘Aluc’? “Em 22 de Novembro de 1978 foi a queda do Matebian”, conta João Miranda, enquanto pede o bloco de notas. “Rompemos o cerco, com o comandante Xanana e outros. Parecia a derrota mas eu pensei que tanto sacrifício não podia ser para nada. E escolhi um nome de guerra”.
No bloco, o militar escreveu: ‘A Luta Continua’, leia-se, ‘Aluc’. “Descart também não era o meu nome. Foi-me dado por dois comissários políticos nessa altura. Parece que Descart foi um cientista”. E o ‘cientista’, contaram-lhe, dizia: “Luto, logo existo”.
quinta-feira, junho 21, 2007
Timor: Rapto - O filho de Aluc foi levado pelo ocupante. A história do reencontro com Benvindo, hoje Shalih - Crescer com o inimigo
Por Malai Azul 2 à(s) 22:51
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Traduções
Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006
"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
Sem comentários:
Enviar um comentário