segunda-feira, maio 12, 2008

A Língua de sabor amargo: professores acampam na escola de Maubisse

** Pedro Rosa Mendes, da Agência Lusa **

Díli, 09 Mai (Lusa) - Maubisse, no distrito de Ainaro (oeste), é uma vila de montanha, entre cumeadas que rondam os dois mil metros de altitude. Tem pinheiros, cavalos e frio, matéria exótica em Timor-Leste.

É com as mãos geladas, numa manhã seca de Maio, que os professores timorenses que frequentam o bacharelato em Língua Portuguesa vão chegando à escola primária número 1 de Maubisse.

No entanto, os primeiros a chegar são os que provêm de mais longe, de aldeias a várias horas de marcha, como Turiscai, no distrito vizinho de Manufahi. E esses têm as mãos quentes.

Duplo enigma de solução simples: os professores de longe dormem na escola durante a semana. É a única maneira de chegarem a horas ao início das aulas, às 08:30.

Está António Alves Pinto, que vem à terça-feira de manhã.

Está Aleixo de Deus. Vem à quarta-feira, fica na escola até sábado.

Nicolau jerónimo vem à terça, dorme na escola "para não chegar atrasado à aula de quarta-feira de manhã".

Cosme Mesquita Rodrigues também chega de véspera às aulas de quarta-feira.

"Norberto Moniz dos Santos é um caso especial. É de Same (Manufahi) mas a Educação colocou-o em Turiscai", explica a professora Fernanda Azóia, embrulhada numa camisola de lã e com um cachecol a cair dos ombros.

"A semana de Norberto divide-se entre o fim-de-semana mais ou menos em Same, depois ele vai ensinar a Turiscai e vem passar o resto dos dias a Maubisse. Está cá segunda-feira à noite para começar de manhã", conta a professora portuguesa.

E há João Soares, o elemento mais velho do grupo. É de Turiscai e vem de cavalo - sem sela, "apenas um pano no lombo e é montar". O animal fica a pastar do lado de fora da sala de aula.

Os alunos e a professora escolheram vários poemas, afixados na parede em folhas caligrafadas, de Ruy Cinatti, Fernando Sylvan, Sophia de Mello Breyner, Vasco Graça Moura e outros.

Farrapos oníricos irrompem também nos detalhes mais prosaicos: o cavalo castanho de João Soares chama-se Manohui, "cavalo com asas, cavalo voador".

Nesta manhã, o grupo de formandos que acampam na escola inclui ainda o professor Luís Alarico do Espírito Santo, que ali fica até sábado.

António Rêgo de Fátima e Lourenço de Araújo, o mais novo dos formandos, chegarão depois.

Quinta-feira foi dia de teste. Às 07:30, os formandos residentes já estavam sentados.

"Já arrumámos a sala. De noite, juntamos as mesinhas e deitamo-nos por cima", explica António, um dos formandos do bacharelato.

"Fazem da escola o acampamento. Trazem as esteiras, os cobertores, as toalhas e a comida. A água vão buscar a uns cursos de água aqui perto. Vivem em comunidade durante uns dias por causa dos cursos de Língua Portuguesa", conta a professora portuguesa Fernanda Azóia.

Dez dos 27 alunos da turma de Língua Portuguesa são de Turiscai, a aldeia de Francisco Xavier do Amaral, fundador da Associação Social Democrática Timorense (ASDT) e da Fretilin e efémero primeiro chefe de Estado timorense, em 1975.

Aliás, todos levantam o braço quando se pergunta quem de entre eles é parente do "velho Xavier", termo com que na montanha ou na cidade é referido o líder da ASDT.

"O velho Xavier é meu tio. A minha mãe é a irmã mais nova dele", diz João. "Morreu quando eu tinha 12 anos", acrescentará depois o professor timorense, na gramática em que os mortos não são mais-que-perfeito mas continuam a habitar o presente do indicativo.

O passado e o presente, contemporâneos um de outro, interceptam-se nos textos dos formandos do bacharelato. O trabalho de casa era escrever uma história tradicional. A tradição é o que se conta e o que se conta, em Timor-Leste, é o que se viveu.

A guerra civil de 1975 entre timorenses é matéria de várias histórias escritas para a professora Fernanda Azóia. Há também quem recorde a grande revolta de Manufahi, de 1912, última campanha militar contra o regime colonial português.

"Nessa altura, alguns liurai (reis), com as populações destas zonas, mataram alguns malai (estrangeiros ou portugueses) e não enumeraram", escreveu um dos professores timorenses no teste de quinta-feira.

"Os que mataram malai foram identificados pelas autoridades locais, como o administrador do concelho de Ainaro, e foram capturados todos e mandados para a Ilha de Ataúro", escreveu um dos professores timorenses.

"E o avô disse à mãe que o sangue do malai mutin (branco) é amargo, porque quando nós matámos um malai, todos os que viviam nesta zona foram capturados. Todos no tempo dos avós. Mas agora não, os malai vêm para ajudar-nos", conclui a história tradicional com rodapé de simpatia.

Fernanda Azóia aponta uma nódoa na folha, a meio da história. "É uma gota de cera. O trabalho foi acabado ontem à noite, à luz de vela aqui na sala".

Outras gotas de luz espreitam na conversa dos formandos de Maubisse, que cresceram a lidar com o tétum, o mambae e o indonésio. São, além dessas três, outras línguas faladas apenas por algumas comunidades em aldeias perdidas e que "não são ensinadas em nenhuma escola, apenas de pais para filhos, em alguns sucos" (freguesias), como explicou João Soares.

O sobrinho do "velho Xavier" fala isny, uma língua que João Soares diz existir apenas nos sucos de Foholau e Orana, em Turiscai. Outros referem o idaté (que Luís Filipe Thomaz lista no seu "Babel Loro Sa'e" sobre as línguas timorenses).

Acampar na escola durante a semana, a bem do bacharelato, "é um sacrifício grande para as famílias e para o dinheiro", dizem os formandos, sem transporte motorizado.

"Não sei quantos professores em Portugal estariam dispostos a estudar nestas condições", comenta Fernanda Azóia.

Sobre o meio-dia, o teste acaba e a escola esvazia-se. Os alunos adultos misturam-se na algazarra das crianças. No meio deles, João Soares puxa o seu cavalo "com asas" pela corda.

Nos quadros de ardósia ficam restos das aulas da manhã, por exemplo, "os deus lavaram-se". Um formando sai de motorizada, com uma inscrição no pára-lamas dianteiro: "Calma total".



Lusa/fim

1 comentário:

Anónimo disse...

Parabéns a PRM por este belo retrato timorense que nos dá tantas lições.

E faz bem em ler Luís Filipe Thomaz. PRM é um excelente exemplo para os colegas de profissão. Espero que continue assim, pois está no bom caminho.

Traduções

Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.

Obrigado pela solidariedade, Margarida!

Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006

"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
 

Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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