Expresso - 14.07.2007
Nas ruas do Bairro Pité, os rapazes do 7-7 preparam as suas poções mágicas para uma nova escalada de combates contra os rapazes do PSHT. O conflito regional entre loromonos e lorosaes já lá vai. A guerra camaleónica de uma cidade submersa no trauma e onde uma geração inteira só conhece uma língua em constante renovação: a violência
Reportagem de Micael Pereira (texto e fotografias), enviado a Timor
DETENÇÃO no Bairro de Bidau numa operação de rotina da GNR, na noite de sábado 30 de Junho
Factos provados: com a espada samurai, o agressor desferiu cinco golpes na vítima. Um no pé, outro na barriga e três na cabeça. Naturalmente, a vítima morreu. No pátio colonial do tribunal de Díli, plantas viçosas aguentam o embate de um sol impiedoso enquanto, na sombra, os mosquitos se alimentam com preguiça, molengando nos ombros e nas pernas da família do morto, sentada num banco corrido. Em frente, no banco oposto, a mulher do agressor, grávida, e vinte rapazes mais recuados, expostos à luz, em silêncio. Ao longo das sessões do julgamento, o convívio tem sido tenso no corredor ao ar livre, com provocações mútuas, mas hoje há uma paz estranha. É a leitura da sentença e polícias malaios da ONU (a UNPOL) andam em círculos lentos, fazendo guarda com coletes à prova de bala.
A dúvida do defensor público, um brasileiro suando o calor húmido da cidade: «O juiz pode entender que foi legítima defesa ou, então, que o réu excedeu o que é admissível para uma legítima defesa e dá-lhe cinco a sete anos de prisão.» Mas essa é só a parte burocrática, fria e distante sobre qual é a verdade e qual deve ser o castigo. O sangue nunca corre no banco dos réus e os espíritos parecem dizer que o sangue tem de continuar a correr em Timor.
A morte de João Barreto, a vítima, à porta da casa de José Lopes, o agressor, não é uma história de faca e alguidar. É uma história de gangues rivais e o que se passar na sala de audiências irá ajudar a detonar uma pequena bomba ao retardador, provocando novas ondas de choque que podem alastrar pela cidade, numa altura especialmente delicada: no dia seguinte, Xanana Gusmão anunciaria no Hotel Timor uma aliança partidária com maioria suficiente para formar governo. E Mari Alkatiri, o líder da Fretilin, reagiria com uma posição de força: só nós, o partido mais votado, podemos ir para o poder. Toda a elite timorense e a comunidade internacional se viravam para o palco político, desatentos ao rio subterrâneo que corre debaixo dos seus pés. Um rio de fluxos e refluxos, de maré vazia e preia-mar, que recomeça lentamente a engrossar o seu caudal, até transbordar por fora, manchando de novo a cidade com uma salva de fogo e sangue.
Rapazes de Banana Road que bateram num vizinho aguardam que ele regresse com os amigos
José Lopes, um polícia encorpado de Ailoklaran, no Bairro Pité, faz parte do Persaudaraan Setria Hati Terare (PSHT), o grupo de artes marciais mais antigo em Timor, introduzido pelos indonésios em 1985 e com 33 mil membros espalhados pelo país. A vítima, João Barreto, era de uma organização rival, o 7-7, que tem ganho território na cidade e utiliza métodos pouco ortodoxos, cultivando poderes mágicos com substâncias químicas. Misturam veneno para ratos, medicamentos, vinho de palma, acreditando que isso lhes dá uma aura de invencibilidade e de fúria alucinada que pode durar noites e dias inteiros.
Quando José passa no corredor, escoltado pelos guardas da prisão de Bécora, traz a cara fechada. Talvez acredite, naquele momento, que não irá assistir ao nascimento do filho. No entanto, as mais de dez versões apresentadas pelas testemunhas da acusação, todos eles membros do 7-7, presentes durante o homicídio, foram tão contraditórias que o juiz português Ivo Cruz não vê outro remédio se não absolver o réu, aceitando o argumento de legítima defesa. A vítima também tinha ferido o agressor com uma catana, o que prova que o grupo não tinha ido de mãos a abanar a casa dele no dia 21 de Janeiro, depois de um elemento do PSHT ter morto, duas horas antes, um tipo do 7-7 (outro polícia, João da Costa Carmo) quando ele passava de moto não muito longe dali. José levanta o defensor brasileiro no ar. Está eufórico. Atrás dele, os amigos do PSHT batem palmas. Então, no meio da sala uma velha senhora põe-se de pé e declara em tétum a sua mágoa: «Obrigado pela justiça feita pelo tribunal, que apesar de saber que este homem matou outro homem decide libertá-lo.» Não há confusão no pátio. Nem ansiedade. No final, já desalgemado, José diz com uma descontracção perturbadora: «Eu sei que eles vão vir para se vingarem. Mas o que é que hei-de fazer? Tenho o direito de me defender.»
Díli é uma terra de rapazes sem medo, onde as mortes são compradas e vendidas emocionalmente com outras mortes. O país está cheio de cemitérios selvagens. Campas crescem como árvores mirradas no meio do capim, nos declives à beira das estradas. Esse é o cenário aqui - não importa como morres porque no fim, mano, terás sempre um enterro cristão.
Uma das maiores lições aprendidas com os indonésios durante os 24 anos de ocupação foi o princípio simples de que não há outra justiça a não ser tirar um dente a quem nos tira um dente. Ou tirar dois ou três, no desabafo feito pelo sub-intendente Leitão da Silva, que assumiu na missão da ONU o comando de todas as forças policiais do distrito de Díli, incluindo a GNR e os 316 agentes no activo da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). Ao todo, quase mil operacionais que, mesmo com o patrulhamento permanente aos bairros, não conseguem evitar incidentes. «Há uma cultura de retaliação. E ela tem de ser imediata. É olho por olho ou, então, dois olhos por um olho. Não me admiro se o José Costa aparecer morto um dia destes.»
Nas horas seguintes, o Bairro Pité vai-se transfigurando. A notícia da sentença propaga-se pelos telemóveis. Ao final da tarde, mais de 200 rapazes do 7-7 abeiram-se da estrada que separa o seu feudo das ruas controladas pelo PSHT, mais para os lados de Hudilaran e de Banana Road, provocando-os. O que dirão uns aos outros? A cem metros de distância, mal avistam a câmara fotográfica do «Expresso», agitam-se indignados, em tom de ameaça. A relação dos jornalistas com os agitadores de rua também mudou muito desde a crise do ano passado. A polícia passou a recorrer a imagens para identificar caras e fazer buscas e detenções. Fotografias são sinónimo de denúncia.
A atmosfera está pesada. Parece que uma intifada descontrolável pode irromper com o cair da noite. Na modesta esquadra de polícia estão apenas dois agentes timorenses, observando ao longe as movimentações, de braços cruzados. «Tem estado assim entre os dois grupos e deve continuar nos próximos dias», diz a rapariga da PNTL. Até transbordar então por fora, quando alguém desprevenido for sacrificado com uma flecha ou um samurai. Uma caravana de carros da UNPOL de vidros protegidos com gradeamentos antipedras chega, entretanto, e encosta no cruzamento. Agentes da Malásia, das Filipinas e da Gâmbia aproximam-se da multidão do 7-7, dispersando-a com a sua presença. Voltarão mais tarde, depois de a caravana partir, e dispersarão de novo, quando ela regressar. É o velho e cansativo jogo do rato e do gato, como nos tempos indonésios. Uma brincadeira perigosa à espreita de oportunidades acidentais.
Pouco antes do início da escalada, no Bairro do Farol, perto das vivendas ricas e confortáveis da elite timorense, o porta-voz nacional do SH, como é conhecido popularmente o PSHT em Timor, recebe um telefonema de José Costa a informar da sentença que o absolveu. «O melhor é não ficares em tua casa durante uns tempos.» Pedro Oliveira, o porta-voz, é um sóbrio e franzino advogado. «Temos muitos advogados.» O seu discurso é racional: «Não nos metemos em problemas. Ao contrário do 7-7, temos uma estrutura organizada e uma hierarquia definida. A indicação que os membros têm é apenas para se defenderem e protegerem os bairros.» Segundo a polícia, no entanto, essa é a conversa do costume. Todos dizem o mesmo, mas os factos provam o contrário: são organizações criminosas, de malfeitores, quase todas com uma estrutura deficitária e uma crescente falta de controlo sobre as bases, cada vez mais empenhadas em andar em roda livre.
A casa onde o porta-voz do SH se encontra, numa área do Bairro do Farol chamada Mandarim, é uma espécie de centro de treino com várias edifícios e um pátio largo. Debaixo de um telheiro, dois membros seniores do grupo levantam pesos à vez. São do Bairro Pité mas treinam como se nada se passasse, àquela hora, na vizinhança deles. A uns metros, junto do porta-voz, um indivíduo chamado Portagem explica que é responsável nacional pela segurança do SH. É ele que gere a protecção nos bairros, vendendo também serviços de segurança a quem quiser comprá-los. Ao lado, um rapaz veste uma camisola elucidativa: «CNRT Segurança Civil». Os planos políticos, sociais e criminosos confundem-se e sobrepõem-se.
Portagem foi fotografado pela GNR durante a maior operação policial feita em Díli para dar caça aos gangues, a 31 de Janeiro, dez dias depois do incidente entre o polícia José Costa e o morto João Barreto e precisamente na mesma zona: Ailokaran, já perto das colinas que cercam a cidade pelo lado de terra. Os militares australianos participaram na operação «String Shot» com um helicóptero de vigilância nocturna e um Black Hawk de ataque, para o caso de se ter de evacuar as forças que montaram o cerco ao «compound» de seis ou sete casas - o coração do SH em Díli. Nessa noite, foram detidos 53 membros da organização, incluindo o seu líder máximo, Jaime Xavier Lopes, um engenheiro agrónomo bem educado que acabaria por se licenciar já na prisão, semanas depois.
POSTO de polícia da zona mais tensa nestes dias em Díli, o Bairro Pité
Com o assalto ao quartel-general do SH, a UNPOL encontrou um arsenal de quase 500 armas tradicionais. Granadas caseiras, pistolas improvisadas, espadas, catanas e 296 flechas de ferro, as rama-ambon - de fabrico comum na cidade e que podem perfurar crânios e têm as pontas desenhadas de forma a tornar impossível retirá-las sem uma operação cirúrgica. Todos os grupos as usam. Jaime, que continua em prisão preventiva com mais 32 elementos, justificar-se-ia dizendo que as foram apanhando da rua, depois de atiradas pelo 7-7.
Desde Dezembro de 2006 que o «compound» de Ailokaran do SH estava sitiado por um punhado de células do 7-7 e de elementos de outros grupos: 5-5, 12-12, 3-3, Colimau 2000. Um pacto foi assinado no final do ano entre esses gangues: todos contra o SH. Bandos de rapazes passaram, desde essa altura, a apelidar-se a si próprios de 0-0, zero-zero - o que significa: não fazemos parte de nada, mas estamos aqui para a confusão. De imediato, o 7-7 aproveitou a decapitação da liderança do SH para marcar território. Assim que os polícias recolheram aos quartéis, o «compound» foi incendiado e, no dia seguinte, um elemento do SH foi encontrado sem cabeça nas proximidades.
O gangue das poções mágicas alargava os limites da sua área de influência, obrigando o inimigo a bater em retirada. Mas o contra-ataque não tardou. Dias depois, uma fileira enorme de casas pertencentes ao 7-7 foi cirurgicamente incendiada em Campo Alor. O SH usaria toda a sua força ao longo do mês de Fevereiro, quando outro corpo apareceu decapitado. «Foi de tal forma que o 7-7 veio ter connosco a pedir protecção», revela o capitão Jorge Barradas, da GNR. Em muitos bairros, instalou-se uma rotina nocturna macabra: animais mortos apareciam cortados aos pedaços, num sinal intimidatório.
De fora do pacto anti-SH ficou o Korka, grupo que tem 36 mil membros no país e que se vinculou oficialmente à Fretilin, de Mari Alkatiri. Num encontro com o «Expresso» no Hotel Timor, o seu líder nacional, Nuno Soares, diz que desde a crise de Abril e Maio de 2006, os membros do Korka têm instruções para não fazer outra coisa que não proteger as suas casas. Nada de incursões a outros feudos. A sua entrada nos combates e homicídios entre gangues teria repercussões difíceis de calcular, podendo eventualmente empurrar o povo para um cenário de guerra civil.
Mais de 10% da população está envolvida em grupos de artes marciais ou similares, estando pronta para fazer muito mais do que praticar desporto. Ao introduzir o SH em Timor nos anos 80 como forma de espalhar o caos, inculcando nos instruendos em Díli uma cultura de violência e vingança, os indonésios abriram um caminho que iria originar muitas rotundas e cruzamentos já depois da independência, quando a desconfiança foi roendo o coração dos timorenses e criando uma paranóia patológica de medo. O que terá feito o tipo do lado? Ou o que está a preparar-se para fazer? Ao mesmo tempo, as casas abandonadas pelos ocupantes do país vizinho (mais de metade das habitações em Díli) e dos timorenses que optaram por fugir obrigaram a uma reorganização geográfica dos bairros. Muita gente da ponta leste imigrou para a capital, passando a dominar os mercados e, com isso, criando uma tensão surda alimentada pela pobreza extrema e um desemprego crescente. A agressividade epidérmica fez o resto.
Mas, havendo sempre uma morte atrás de cada morte, num aglomerado retorcido de cadáveres e razias incendiárias, como se chega à ponta do novelo dos combates surgidos com a crise do ano passado? Pequenas pistas foram levantadas. Em Maio de 2006, quando Díli mergulhou numa luta de lorosaes (timorenses da ponta leste do país) contra loromonos (de todos os outros distritos), havia demasiado fumo no ar. Hoje sabe-se que, em muitos bairros, loromonos e lorosaes nunca se chegaram a zangar, protegendo-se uns aos outros. Pedro Oliveira, o porta-voz do SH, revela que nessa altura, em Junho, a direcção do grupo recebeu uma carta do tenente Gastão Salsinha, líder de 600 peticionários do exército de origem loromono, a convocá-los para a luta. Supostamente terão recusado («somos loromonos e lorosaes, não fazemos distinção»), mas meses mais tarde, no Verão, acabariam por iniciar a guerra com o 7-7, depois de o gangue rival ter atacado em Ermera, perto do local onde os peticionários estavam acantonados.
Conotados como colaboracionistas do regime de Suharto, os SH haveriam de, mais tarde ou mais cedo, ser desafiados pelo 7-7, cuja rede nacional foi a mais activa a incomodar o exército ocupante nos anos 90. «Julgam que são os únicos heróis», lamentam os elementos do SH. Foi um crescendo de retaliações, até que no fim de Novembro se daria o primeiro ataque sério e irreversível em Díli: no bairro de Fatuhada, a casa de Virgílio, líder máximo do 7-7 em Timor, tinha sido queimada.
Uma guerra sucedeu a outra guerra, numa desesperançada troca de testemunhos. Mas nem tudo são episódios tristes. No dia 12 de Novembro do ano passado, na comemoração do massacre de Santa Cruz, um pequeno milagre aconteceu nas ruas de Díli. Em Aimutin (loromono) e no Mercado de Comoro (lorosae), bairros rivais, os timorenses foram acendendo velas às portas de casa, para rezar e velar pelos mortos. «Um dos de lá chegou-se à Estrada de Comoro e veio pedir quatro velas emprestadas», conta Paulino Alves de Jesus, morador em Aimutin. «E quando as recebeu, disse: em troca, fazemos as pazes.» De um e de outro lado, vieram todos para o meio da Estrada de Comoro, onde durante meses se tinham apedrejado. Crianças, velhos, mulheres e rapazes abraçaram-se. «Chorámos e dançámos a noite inteira.» Para contagiar o resto da cidade, um grupo partiu para o campo de deslocados do aeroporto, sendo recebido a tiro pelos militares australianos, que pensaram estar iminente um ataque. «Tivemos de voltar na manhã seguinte e daí fomos para Taibessi e outros bairros.»
Embora frágil, essa paz perdura até hoje por cima da escalada de violência entre gangues. Em Aimutin, o loromono Paulino aluga casas a lorosaes. E talvez essa paz perdure debaixo de uma escalada de violência futura, temida pela ONU, entre militantes dos partidos políticos, sustentada pela paranóia colectiva de desconfiança e medo. «Deviam mandar embora os militares e trazer um exército de psicólogos», dizia na semana passada um australiano que trabalha no suporte médico às operações do seu país. Desde que se tornaram livres, os timorenses são como um campo cultivado onde semearam um misto de foices e seara. Não conseguem colher sem serem colhidos. Querem a paz, mas a cada rajada de vento lembram-se de que a única coisa que aprenderam foi inclinar-se para um lado: a guerra.
quinta-feira, julho 19, 2007
Gangues de Timor
Por Malai Azul 2 à(s) 10:41
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Traduções
Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
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Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006
"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
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