Agência Ecclesia - Lisboa,Lisboa,Portugal
O povo timorense é a nossa missão
Se se fizesse uma lista de pessoas profundamente conhecedoras da história dos últimos 30 anos de Timor-Leste, dois padres jesuítas portugueses apareceriam, com certeza, a encabeçar essa lista. A passar um tempo de descanso em Portugal, o padre João Felgueiras (JF) e o padre José Martins (JM) contaram ao Diário do Minho (DM) algumas experiências vividas no decurso da longa missão em Timor-Leste.
O padre João Felgueiras é natural das Caldas das Taipas, Guimarães, e nasceu no dia 9 de Junho de 1921. O padre José Martins é natural de São Romão do Neiva, Viana do Castelo, onde, no passado dia 7, celebrou as bodas de ouro sacerdotais.
Os desafios colocados a Timor e à Igreja timorense são, para estes dois sacerdotes, vários e urgentes. Mas também concordam que «Timor pode muito bem ser uma jóia da Igreja e da comunidade internacional». Num país marcado pela guerrilha interna, pela invasão indonésia, por referendos, pelo processo moroso que levou à independência, os dois jesuítas missionários são unânimes em afirmar que «a morrer e a morrer» morriam em Timor. Porque, explicam, o povo timorense é a sua missão.
DM - Como se deu a ida para Timor?
JF - Estava no Colégio da Companhia de Jesus, em Cernache, e o Padre Provincial propôs-me ir para Timor. Isto em Maio de 1970. Fiquei surpreendido e, então, pedi um tempo para reflexão. Em Dezembro desse ano, parti de Cernache rumo a Timor. Neste tempo, entre o pedido do Provincial e a minha partida, li muitos livros sobre Timor a fim de criar uma visão mais objectiva daquele País. Li praticamente todos os livros que havia e que estavam na biblioteca do colégio e isso enriqueceu a minha visão. Preparei-me para partir, com consciência renovada da minha missão de cristão, de sacerdote e de jesuíta. Tomei esta missão a sério, não apenas como uma aventura cega. Inseri-me no espírito dos grandes missionários, sabendo da responsabilidade que era e da própria beleza da missão em si.
JM - A minha ida para Timor foi muito diferente da do padre João, porque eu nunca tinha pensado, durante a minha formação, ir para terras de missão, nem nunca tinha pedido isso aos meus superiores.
Estava a fazer os meus estudos em Roma, no último ano da licenciatura em Teologia Espiritual, quando o Provincial me perguntou se eu tinha alguma objecção de ir a Timor por dois anos, no máximo três. Acabado esse período viria para Portugal trabalhar. Claro que não me opus e, acabados os estudos, em 23 de Setembro de 1974, embarquei para Timor.
DM - Como decorreu a viagem?
JF - Procurei aproveitá-la o melhor possível, no sentido de me informar e de conhecer mais o País. Antes de ir para Timor, passei por Roma, onde passei o Natal de 1970, e lá encontrei o ainda estudante de Teologia José Alves Martins. De Roma, parti para outra etapa bíblica e Paulina – Atenas –, antes de me dirigir para Jerusalém. Foi uma experiência espiritual única na minha vida. Fiquei na casa dos Franciscanos e, com uma família argentina, percorri todos os lugares santos de Jerusalém.
A passagem por estes locais ajudou-me ainda mais a fortalecer a consciência da missão que abraçava e que se chamava Timor. A Jerusalém seguiu-se Goa, por onde andou São Francisco Xavier. Depois, Hong Kong, onde um atraso ocasional permitiu que contactasse com os focolarinos, com quem estava já bem relacionado porque tinha participado numa Mariápolis, em Fátima. Nesse encontro, contactei com vários estudantes de teologia timorenses, entre eles o actual Bispo de Díli. Seguiu-se Macau e entrar lá foi para mim uma alegria imensa.
Todo este tempo foi uma espécie de curso preparatório de ambientação para entrar em Timor. Quando parti de Macau rumo à minha missão, recordo que me atrasei para o avião. Ao chegar ao aeroporto, mandaram-se ir a correr para conseguir entrar ainda no avião, mesmo sem revistar as malas.
A primeira vez que sobrevoei Timor foi muito emocionante. Tinha a consciência que estava a sobrevoar terras “virgens” que me iam acolher para desempenhar a missão. Aterrei no aeroporto de Baucau e daí parti noutro avião, pequeno, que me levou a Díli. Lá, estava à minha espera a comunidade que me ia receber. A alegria, ao encontrar os meus novos companheiros foi muito grande. Contactei com os sacerdotes que trabalhavam em Timor e, depois, fui saudar o Bispo de Díli, D. José Joaquim Ribeiro, que tinha sido meu companheiro como seminarista em Évora.
DM - Qual era a missão?
JM - A minha missão era ser director espiritual no Seminário de Díli e professor. Chegado a Timor, comecei imediatamente a cumprir a minha missão. Não tive uma longa preparação como o padre João Felgueiras e o processo da minha ida decorreu rapidamente. Claro que o objectivo, aparentemente, era diferente. Eu ia a Timor, o padre João foi para Timor. Encarei a minha ida como uma espécie de estágio, embora já fosse sacerdote. A circunstância que me fez continuar até aos dias de hoje foi a guerra civil, em 1975, entre os dois maiores partidos timorenses – a União Democrática Timorense e a Frente Revolucionária de Timor-Leste. Mesmo aí não tinha intenção de ficar para sempre. Em 7 de Setembro desse ano, a Indonésia invade Timor e eu fiquei como que retido. Não quis sair e fui continuando, continuando, até hoje.
Entre 1986 e 1990, por causa de umas férias do padre João, fiquei como reitor do seminário. No meio das dificuldades, dos perigos e da tensão, houve espaços de tempo felizes.
JF - A minha missão era o Seminário de Díli, numa encosta da cidade. Quando cheguei, a comunidade reuniu-se para me dar as boas-vindas e numa das primeiras conversas que tive com um seminarista, perguntando-lhe se sabia o motivo de eu ter ido para Timor, ouvi uma frase que ainda hoje não esqueci. Disse-me esse rapaz: “O padre veio, porque acreditou”. Fiquei impressionado com aquela frase, vinda da boca do primeiro seminarista timorense com quem falei.
Esse rapaz acabou por ser preso pelos indonésios e veio a falecer na sequência dos maus tratos. No tempo que fui reitor, de 1971 a 1975, tínhamos uma vida normal de seminário. Os rapazes tinham um excelente índice intelectual. Contudo, o 25 de Abril aqui em Portugal perturbou muito o ambiente de Timor. Já não era o Timor que eu tinha encontrado quando cheguei. O Seminário não foi excepção a essa perturbação e instabilidade, por causa das movimentações políticas.
Alguma coisa estava a fervilhar e isso sentia-se. Os fundadores dos partidos, se não todos uma grande parte, tinham sido seminaristas, que eram das pessoas mais cultas do país. O Seminário organizou, em Agosto de 1975, por ordem do prelado, uma peregrinação a Nossa Senhora de Aitara. Mas, o golpe de 9 de Agosto e o consequente contra-golpe criou grande perturbação e guerrilha entre os timorenses.
Estávamos na montanha, em peregrinação, quando tudo isso aconteceu. Porque ia dar-se um conflito armado, nós tivemos que sair para as montanhas. Na incerteza, fomos para Baucau. Nos postos administrativos éramos avisados que os clérigos deviam sair de Timor. Efectivamente, as religiosas tinham ordens superioras para abandonar o País. Para os padres, não havia essa ordem de saída. Eu também não podia sair deixando os seminaristas dispersos.
Regressei, então, para a casa dos Salesianos onde estavam os seminaristas à minha espera. Ficámos por lá. Estávamos reunidos no trabalho e na oração até que o Bispo informou que a Indonésia estava a invadir Timor. Com o domínio indonésio não havia guerra no interior mas apenas nas fronteiras, para onde se dirigiam diariamente milhares de homens soldados. Mas, a invasão alastrou.
O Seminário foi bombardeado e totalmente destruído. Durante este ataque, lembro que estávamos no interior da capela, estendidos debaixo dos bancos, para evitar os estilhaços.
Estávamos persuadidos de que os indonésios iriam respeitar os lugares da Igreja e até tínhamos posto bandeiras brancas, mas mesmo assim fomos bombardeados. Quando parou este ataque saímos de lá. Instalámo-nos numa casa de um timorense que nos deu guarida, no relevo da encosta da cidade. Começámos a cavar buracos e valas no chão para nos protegermos dos bombardeamentos, que aconteciam diariamente, de canhões, morteiros e metralhadoras.
Foi uma época terrível. As pessoas quando viram que nem os lugares da Igreja haviam sido respeitados pelos indonésios fugiram todas dizendo: “Vieram para nos matar a todos”. Nesse preciso momento, a Indonésia perdeu todas as hipóteses de simpatia dos timorenses. Este ambiente de violência decorreu até ao referendo de 1999, que foi favorável à independência de Timor.
DM - No meio de tanta tensão e perigo, consegue escolher o melhor momento?
JM - O melhor momento que vivi em Timor foi, efectivamente, no primeiro ano que cheguei, entre 1974 e 1975, porque foi um ano de paz. Os tempos de paz são sempre bons momentos. Também a fase seguinte ao referendo foi um bom momento que passei, assim como a reabertura do Seminário em Díli, no ano de 1978.
DM - E o pior?
JM - Houve concretamente dois momentos em que senti a vida por um fio muito ténue. Quando estávamos refugiados nas montanhas, por causa da invasão da Indonésia, no dia 18 de Dezembro, vim ao Seminário Menor diocesano e fui atingido na anca por um estilhaço de morteiro. Apesar da profundidade da ferida, consegui chegar ao seminário. Também, em Setembro de 1999, com Díli debaixo de fogo pelas milícias, um dos padres que estava connosco foi morto a tiro. Ao que parece queriam roubar os nossos carros. Foi um momento providencial, porque sentimos a morte muito perto, morte essa que chegou, infelizmente, para esse padre alemão que estava connosco. Faltam catequistas, seminaristas e sacerdotes...
DM - Quais são os desafios de Timor?
JM - A estruturação do país é essencial, mas convém que os líderes políticos sejam pessoas bem formadas. Neste momento, parece-me que Timor não tem isso. Até tem pessoas formadas, mas falta-lhes experiência de governação. São três os departamentos a necessitar de acção imediata: Agricultura, Saúde e Educação. Timor tem recursos e meios, no entanto falta-lhe projectos. Ao nível da educação, o desafio é tremendo. A Língua Portuguesa, que é oficial desde o referendo, só é falada por pessoas com mais de 35 anos. É importante apostar na aprendizagem do Português, que está nos programas apenas até ao 6.º ano. Ao nível do turismo, faltam todos os projectos.
DM - E os desafios da Igreja timorense?
JF - Antes de mais, manter a lealdade e o respeito para com o povo timorense, porque as suas características deviam ser mantidas, preservadas e respeitadas. A Igreja tem um papel importante na defesa e na promoção da dignidade dos timorenses. Por isso, é essencial que a hierarquia crie consciência para pensar no futuro de Timor. Em Timor faltam catequistas, seminaristas e sacerdotes... Mas falta também, formação, catequese. Apostar na qualidade. Timor pode muito bem ser uma jóia da Igreja e da comunidade internacional.
JM Os missionários que vão para Timor devem aprender o Tétum e o Português. Infelizmente, isso não acontece. Por exemplo, na nossa comunidade falámos Inglês. Tem havido brandura por parte do Ministério da Educação e da Igreja a esse respeito.
DM - Regressam a Timor no dia 20 de Outubro para fazer o quê?
JF Faremos o que sempre fizemos: o povo timorense é a nossa missão. Durante todos estes anos fomos leais ao povo e à missão. Ambos temos a consciência de que fomos e vamos continuar a ser operários fiéis do Senhor. Criámos a Escola “Amigos de Jesus” que tem alguns laços com a Companhia de Jesus, mas é autónoma. Pretende favorecer e dar valores humanos e religiosos que a criança precisa para o seu lento e gradual crescimento.
Este ano, a escola conta com 512 alunos. Apesar de já existir há dez anos, o edifício foi benzido em Maio deste ano. Fica situado junto à casa dos Jesuítas em Díli. A escola precisa de ajuda monetária principalmente para o pagamento aos professores. Para isso, as pessoas podem enviar os seus donativos para uma conta que foi criada com essa finalidade. Sabemos que os portugueses, e os bracarenses em particular, são generosos. Por exemplo, a Igreja de Braga ofereceu, há poucos anos, todos os livros litúrgicos para todas as paróquias timorenses. Bíblias, rituais das celebrações, o Vaticano II, os volumes da Liturgias das Horas, tudo foi oferecido pela Arquidiocese. A escola é outro projecto que quer contribuir para o futuro de Timor, do País e da Igreja. Os interessados podem ajudar com donativos para a conta com o NIB 0033 0000 0001 6073 2880 8.
Entrevistas Diário do Minho 01/10/2008 15:26 12643 Caracteres 105 Timor Leste
quinta-feira, outubro 02, 2008
O povo timorense é a nossa missão
Por Malai Azul 2 à(s) 19:47
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Traduções
Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Obrigado pela solidariedade, Margarida!
Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006
"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
Sem comentários:
Enviar um comentário