Lusa
Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2009
O Matebian, santuário da resistência timorense, guarda as memórias dos que morreram e dos que lutaram durante a ocupação indonésia de Timor-Leste.
Matebian, em língua macassai, designa a “casa dos mortos”, e o maciço montanhoso é o lugar onde a mitologia de Timor-Leste se encontra com a mitologia da guerrilha das Falintil.
“O Matebian cruza duas histórias simbólicas”, resumiu o veterano Somotxo, ex-segurança do ex-comandante e actual primeiro-ministro Xanana Gusmão, durante uma peregrinação recente ao maciço montanhoso.
“Os nossos avós diziam que é o lugar dos mortos. E (depois da invasão indonésia) foi a última Base de Resistência, o último reduto”, cuja queda, em 22 de Novembro de 1978, marcou o fim de três anos de guerra convencional e o início da campanha de guerrilha.
Somotxo, num regresso acompanhado pela Agência Lusa, voltou este mês aos picos do Matebian, pela primeira vez em quase vinte anos.
O ex-guerrilheiro combateu pelo Matebian em 1978, em confrontos directos de infantaria. Entre 1984 e 1990 nunca saiu da montanha: “Conheço o Matebian como nem conheço a minha terra”.
Dos combates em 1978, Somotxo recorda o ataque a uma reunião do comando timorense, com uma gruta bombardeada e “um homem das forças de autodefesa, com catana e lanças, a correr para nós com os pulmões pendurados”.
O homem corria “a gritar, a falar e a chorar. Um estilhaço cortou-lhe o peito e as costelas partiram. Não sei se sobreviveu ou morreu. Na altura já era a confusão”.
Na subida de Baguia para Haiconi, num trilho virado a leste, vem também à memória “uma velha que estava sentada à entrada de uma gruta aqui perto”.
“Pensei que a mulher estava doente. Falei-lhe e ela não respondia. ‘Então, então, então, o que aconteceu?’”, insistia o guerrilheiro.
“Ela tinha uma panela e um bocadinho de comida ao lado. Não sei se ficou ali por doença ou falta de água. Não vi mais nada. Fui tocar-lhe mesmo. E olhar-lhe para os olhos. Já estava morta”, recorda Somotxo.
Nevoeiros e chuvas criam, na paisagem agreste, uma atmosfera difusa e densa, quase religiosa e habitada por silêncios.
O Matebian é, também, um universo irreal de formações geológicas que lembram lápides gigantescas, pontuadas por verdadeiros cemitérios perdidos a cerca de dois mil metros de altitude.
Há prados escondidos nas nuvens, onde correm cavalos selvagens apenas identificados pelo ferro do clã.
Somotxo palmilhou o maciço a partir de 1984, “procurando abrigos para Xanana Gusmão e outros comandantes”.
Já nessa altura Somotxo era também o responsável pelo rádio das Falintil, que um dia Xanana Gusmão estreou com a frase “East Timor calling”, anunciando ao mundo que a resistência afinal não tinha morrido.
Hoje, o Matebian é território de uma recolonização discreta de famílias que fazem casas e hortas nos ninhos-de-águia de onde os bombardeamentos indonésios expulsaram, em 1978, os seus antepassados.
“Cá em cima não havia nada. Tínhamos que ir roubar milho e mandioca. E vestuário. Tínhamos que despir a população para se poder sobreviver”, diz Somotxo.
“Uma vez, quando tirei uma catana de um jovem, chorou. Chorou a dizer-me que foi desterrado para Ataúro. ‘Só há dois meses voltei e comprei esta catana. Agora com o que vou fazer horta?’”. “E eu disse-lhe que nós precisamos mais. ‘Com a tua catana, vou continuar a luta. E tu vais comprar outra’”, recorda o ex-guerrilheiro.
“Sente-se tristeza pelos que morreram aqui e alegria porque no final Timor-Leste conseguiu a independência”, comenta o guerrilheiro, que foi vice-ministro do Interior de dois governos da Fretilin entre a crise de 2006 e as eleições de 2007.
O Matebian, montanha dos mortos, não ficou incólume à vida nova da nação.
“Lembro-me de um tronco cravado de estilhaços aqui”, diz Somotxo, parando junto a uma árvore no sopé do Matebian Feto (“Mulher"; há também o pico Mane, “Homem”).
“Os estilhaços desapareceram porque a árvore cresceu. Está grande agora. Na altura era pequena. Engoliu os estilhaços. Ou começaram a cair. A pele da árvore começou a fechar. Não sei”. Somotxo sabe que a árvore é a mesma de 1978 porque está junto de duas crateras feitas por aviões Bronco, agora alagadas pela chuva.
“Eram maiores, fundas. Com o tempo, parece que a terra começou a enchê-las. Para quem não tem ideia do que foi isto, parecem lagos. Mas eram bombas”, afirma o veterano.
Que angustia,tb estive la, tinha 6 anos de idade. Perdi muitos amigos e familiares. Que pesadelo...ainda hoje recordo os bombardiamentos com muita tristeza...sofremos para os outros gozarem...
ResponderEliminarUm abraço, representando mil palavras que aqui não consigo traduzir, para o grande herói Somotxo - esse TIMORENSE com letra grande - e para todos os outros como ele, que graças aos seus inúmeros sacrifícios fizeram com que muitos possam hoje gozar os benefícios da independência e principalmente da PAZ, alguns dos quais agora se enchem à custa do dinheiro do povo timorense e ostentam louros que não lhes pertencem.
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