quinta-feira, junho 21, 2007

Timor: Rapto - O filho de Aluc foi levado pelo ocupante. A história do reencontro com Benvindo, hoje Shalih - Crescer com o inimigo

Expresso - Edição 1807 de 16.06.2007
Pedro Rosa Mendes, em Díli


Um filho é uma questão cutânea: os anos que o sangue nos cresce fora da pele. Mais ainda no caso de Benvindo e de Shalih. A biografia de ambos começa nas cicatrizes do pai - e, um dia, fundiu-se nas suas rugas.

Por onde começar? Era uma vez, em 1988, um comandante da guerrilha que é ferido pelo Exército indonésio (TNI) nas montanhas de Timor.

Ou assim: era uma vez, em 2003, um arquitecto javanês que recebe a visita de dois timorenses que ele não conhece mas que já sabe quem são. Trazem nas mãos a fotografia de uma criança.

Ou também assim: era uma vez, há dez dias, um tenente-coronel das Falintil-Forças de Defesa de Timor-Leste (F-FDTL), numa delegação pequena de um país pequeno, escutando o hino do antigo inimigo sob o grande candelabro da grande sala do grande palácio, na grande capital do grande país que, durante 24 anos, provocou à sua gente um enorme sofrimento.

Ou ainda assim: era uma vez, há quatro dias, João Miranda Descart ‘Aluc’, chefe da Casa Militar do Presidente José Ramos-Horta, em Díli, com uma chávena de café e três retratos espalhados na mesa. Olhando para as fotos, o ex-comandante da guerrilha, o actual tenente-coronel João Miranda Descart ‘Aluc’, afirma: “Trazê-lo de volta seria uma ingratidão”.

Os três retratos são de Benvindo, o quarto filho de João Miranda, “com cerca de quatro anos, com cerca de 12 e com cerca de 17”.

Em 1988, João Miranda Descart, o comandante ‘Aluc’, chefiava a 1ª Unidade da guerrilha timorense no leste do país, “para lá da estrada Laga-Baguia”. Em Março, ‘Aluc’ foi atacado e ferido em combate a sudeste de Lospalos. Uma bala de uma metralhadora M16, calibre 5,56, furou-lhe a perna direita entre o joelho e o calcanhar.

“Resolvi soltar a minha esposa e o Benvindo”. “Soltar”: arranjar que a mulher e o bebé entrassem na vila de Lospalos com a ajuda da rede clandestina para entregar a criança aos cuidados do avô, pai de ‘Aluc’.

O comandante indonésio do Batalhão 745, estacionado em Lospalos, soube que um bebé tinha sido entregue na vila. O inimigo directo de ‘Aluc’ chamava-se Suriadi e “tinha dois filhos, mas estavam ambos a estudar em Java. A mulher dele queria arranjar uma criança que estivesse com eles em Lospalos”. Suriadi bateu à porta do velho e levou a criança, “mas uma semana depois, voltou a casa do meu pai e disse-lhe: “sei que o bebé é filho do teu filho mas tu não tens condições para o criar. É melhor ele ficar comigo e tu podes ir visitá-lo e brincar com ele quando quiseres”.

Uma pista descoberta por acaso

A mãe de Benvindo “desceu à vila em 1990”. No ano seguinte, conseguiu localizar e telefonar ao comandante Suriadi (entretanto colocado em Bali) através de outro oficial das TNI em Lospalos.

“Suriadi ofereceu-se para pagar uma passagem de avião à minha mulher, para ela visitar o Benvindo em Bali. Só que ela não falava bem a língua e não percebeu o que lhe disseram. Apenas pediu uma fotografia do Benvindo, o número de telefone e o endereço de Suriadi”.

No mato, a guerra continuou. “Em 1999, durante a violência das milícias, tudo foi comido pelo fogo e a minha mulher perdeu a morada e o telefone do filho”. Sobrou “a chapa com a fotografia do Benvindo”.

A pista de Suriadi e Benvindo foi uma vez mais reencontrada, por acaso, em 2003, através de um primo timorense de ‘Aluc”, que integrou o Batalhão 745 sob comando do sucessor de Suriadi, um coronel casado com uma timorense.

Em Setembro desse ano, ‘Aluc’ e a mulher viajaram para Jacarta. Levavam na mão a cópia da fotografia que Suriadi tinha enviado para Lospalos em 1991.

Finalmente, o reencontro. Benvindo Azé Descart crescera não como timorense, fataluco e católico mas como indonésio, javanês e muçulmano. O quarto filho do comandante ‘Aluc’ chama-se Shalih Rahman. É um jovem arquitecto em Jacarta e vai prosseguir estudos na Austrália.

“Benvindo sabia há dez anos que Suriadi era o pai adoptivo. Um dia, perguntou a uma criada lá de casa e ela contou-lhe a verdade”.

“A vida de Benvindo é em Jacarta. Ele sempre foi tratado como filho. Eu disse isso à minha mulher”.

Benvindo ou Shalih, ou Benvindo e Shalih, visitaram Timor-Leste em Setembro de 2004. Foi a Lospalos. Trouxe o pai adoptivo.

‘Aluc’ mexe de novo a chávena. “A propaganda indonésia durante a ocupação dizia que nós e eles éramos irmãos, que tínhamos a mesma cor. Hoje é que isso é verdade”.

Suriadi morreu de ataque cardíaco em 2005. ‘Aluc’ foi às exéquias. Entardece em Díli e o sol põe uma toalha sépia sobre os três retratos de Shalih.

E o que significa ‘Aluc’? “Em 22 de Novembro de 1978 foi a queda do Matebian”, conta João Miranda, enquanto pede o bloco de notas. “Rompemos o cerco, com o comandante Xanana e outros. Parecia a derrota mas eu pensei que tanto sacrifício não podia ser para nada. E escolhi um nome de guerra”.

No bloco, o militar escreveu: ‘A Luta Continua’, leia-se, ‘Aluc’. “Descart também não era o meu nome. Foi-me dado por dois comissários políticos nessa altura. Parece que Descart foi um cientista”. E o ‘cientista’, contaram-lhe, dizia: “Luto, logo existo”.

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