Expresso
06-04-07
Micael Pereira
Em menos de um ano, Ramos-Horta preparou-se para trocar de lugar com Xanana Gusmão. Junto têm um pacto para governar Timor a quatro mãos, com a ajuda da Igreja. Serão eles capazes de trazer paz à nação mais nova do mundo?
Os sonhos raramente se cumprem como se espera. Quando ainda era o diplomata sem pátria mais famoso dos corredores da ONU, na angustiante década de 90, José Ramos-Horta dizia que no dia em que pudesse viver num Timor independente deixaria a política para se poder confundir com o povo. Compraria uma moto e, tal como na juventude outrora vivida em Díli, passaria a dedicar-se ao jornalismo, cruzando-se de vez em quando com o amigo poeta e horticultor Xanana Gusmão para recordarem os velhos tempos da resistência. Era o sonho de um «dandy».
A história da moto concretizou-se - a outra não. O Nobel da Paz de 1996 tem, aliás, duas motos (uma Kawasaki de 1000 c.c. e um modelo antigo com «sidecar») mas em contrapartida está mais agarrado do que nunca à política. E ao amigo poeta, com quem reforçou nos últimos tempos a aliança pessoal que traz desde os anos 80, quando aceitou ser o representante no exterior de um líder rebelde preso às montanhas e com uma grande necessidade de «marketing» internacional.
No intervalo de semanas, Ramos-Horta saltou do seu meio natural da diplomacia planetária como ministro dos Negócios Estrangeiros e do desejo (assumido, depois de negado) de ser secretário-geral da ONU para um inesperado lugar de superministro, acumulando com a Defesa. E logo a seguir assumiu-se como primeiro-ministro interino, até se transformar em poucos meses no candidato-estrela a Presidente da República, lançando-se como favorito ao lugar de Xanana Gusmão nas eleições de dia 9, numa viragem rápida que surpreendeu pouca gente em Díli.
A sua ascensão tem sido feita à custa dos métodos que sempre usou para contrariar os argumentos indonésios, com a diferença de agora embeber as forças internas do seu país com o charme dialogante que dantes derramava apenas nos ministros e embaixadores de outros países. A nota aparentemente desconcertante é o tom de renúncia com que tem polvilhado a carreira, o que não é de todo original em Timor.
Seis anos depois de regressar ao país - a seguir ao referendo da independência em 1999, após 24 anos de exílio em Nova Iorque e Sidney - Ramos-Horta parece sofrer da síndrome do «plantador de abóboras» eternamente adiado que tanto tem afectado Xanana após a saída da prisão de Cipinang, em Jacarta. Não queria ser primeiro-ministro, mas teve de ser; não quer ser presidente, mas vai ter de ser. E esse o ponto nevrálgico que faz com que as opiniões se dividam sobre ele, tal como sobre Xanana.
Onde acaba o sacrifício e começa a ambição? «Decidi avançar com a minha candidatura depois de muita hesitação e reflexão», diz Ramos-Horta, admitindo ao EXPRESSO que Xanana insistiu com ele para que tomasse a iniciativa, numa manobra pensada a dois. Após a queda do primeiro-ministro Alkatiri (exigida por Xanana) e do desejo do secretário-geral do maior partido timorense em se recandidatar nas legislativas de 2007, o cenário já se tornara claro. Ao lavar, na altura, a roupa suja da resistência num longo e nada ortodoxo discurso para um Presidente, em que acusou Alkatiri e os seus colaboradores mais próximos de desonestidade e tentativa de usurpação do poder, Xanana escancarou o fosso político e pessoal entre chefe de Estado e chefe de Governo. No fim, ficou espaço aberto para uma única saída: tendo em conta a fraca expressão dos partidos da oposição, o inimigo interno teria de ser enfrentado nas urnas por ele próprio, o Nelson Mandela timorense, com a ajuda do seu eterno braço diplomático, para que a presidência não venha a funcionar como uma força de bloqueio nas mãos da Fretilin.
Na comunidade civil portuguesa instalada em Díli - boa parte dela adepta da gestão sóbria e austera de Mari Alkatiri - a verdade é que a figura de Ramos-Horta foi caindo numa espécie de sombra, juntamente com Xanana Gusmão. Alimentados por um sentimento anti-australiano capaz de contaminar todos os raciocínios com uma desconfiança epidérmica em relação a Camberra, muitos quadros portugueses vêem nos dois fundadores do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT) os aliados de uma tomada de poder dissimulada que começou a ganhar forma em Maio do ano passado, após o desembarque do primeiro contingente de «cangurus» (como os portugueses lhes chamam) para acudir à crise entre o exército e a polícia locais.
Nos comícios das últimas semanas, Kristy Sword, a mulher australiana de Xanana, foi representando o marido no apoio público a Ramos-Horta. E nos palcos apareceu também José Luís Guterres, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros que perdeu as eleições internas da Fretilin num polémico congresso em que as votações foram feitas de braço no ar (quando a Constituição pede que sejam secretas). Guterres é a face mais visível da Fretilin Mudança, uma facção do partido de Alkatiri que trava uma luta aberta contra o chamado «grupo de Maputo» que, além do ex-primeiro ministro, inclui Ana Pessoa, ex-mulher de Ramos-Horta e mãe do seu filho. O grupo é assim conhecido por ter vivido o exílio em Moçambique, havendo quem o encoste a uma linha marxista inspirada na Frelimo.
Nas montanhas, as duas facções rivais da Fretilin têm-se envolvido em pequenos confrontos quando se cruzam em comitiva. A violência talvez não tenha alastrado mais porque os militantes do recém-criado Congresso Nacional para a Reconstrução de Timor de Xanana Gusmão que imita as siglas do antigo CNRT («propuseram também o meu nome como fundador, mas eu recusei», diz Ramos-Horta) só estarão organizados para as legislativas, previstas para o Verão.
Contra a máquina de bandeiras e capital histórico da Fretilin, o Nobel conta sobretudo com uma máquina ainda mais poderosa em Timor: os padres. Num país onde as ondas hertzianas da rádio e da televisão morrem à saída de Díli e onde metade do povo é analfabeto, as boas novas são dadas quase em exclusivo na missa. «Tenho o apoio generalizado da Igreja», garante o candidato. Embora o seu principal adversário nas eleições e presidente do maior partido, Francisco «Lu Olo» Guterres, se afirme católico e contraponha ao EXPRESSO que «há muitos padres que estão do lado da Fretilin», dificilmente esse número será significativo, depois da clivagem entre o clero e o «grupo de Maputo» em 2005, com manifestações de fiéis contra a intenção do Governo em acabar com a obrigatoriedade das aulas de religião nas escolas.
No seu extenso e pormenorizado programa eleitoral, Ramos-Horta promete um mundo novo à Igreja de Timor: 10 milhões de dólares por ano (num orçamento de 300 milhões), voz activa nas políticas sociais e um reforço da importância de Deus para o Estado: «Defendo uma alteração à nossa Constituição, com a inclusão de uma referência significativa a Deus, aos valores morais e espirituais que Ele ensina, porque, ao fim e ao cabo, Ele é a definição do que é puro e recto em todo o Universo.» Este é o programa - confessa Ramos-Horta ao EXPRESSO - «que o CNRT já me disse querer adoptar para as eleições legislativas. Xanana Gusmão concorda quase a 100 por cento com as minhas ideias».
Serão a diplomacia e a retórica armas suficientes para conquistar uma presidência num país mergulhado na mitologia popular e no animismo e onde a lógica muitas vezes escapa ao raciocínio cartesiano do Ocidente? Ramos-Horta formou-se nos Estados Unidos, fez investigação em Oxford e deu aulas na universidade em Sidney. É o mais ocidental dos políticos timorenses. E isso nota-se. Num dos dias de campanha, o candidato ia a passar num caminho e emocionou-se ao ver um velho que gritou o seu nome. «Era um daqueles loucos que andam meio perdidos por aí.» Como o velho estava à chuva, deu-lhe o seu chapéu («tinha sido oferecido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros alemão») e uma nota de 20 dólares («nunca tinha visto uma»). Parece um gesto razoável. Mas o que teria feito no seu lugar um herói das montanhas?
NOTA DE RODAPÉ:
Desculpe? Serão eles capazes de vencer alguma eleição?...
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