terça-feira, agosto 08, 2006

Para recordar a Manifestação da Igreja Católica em Díli


Do Joao Porventura:

“Ensino das Religiões” em defesa do direito ao conhecimento e à diversidade interpretativa


O próprio Moisés, que tinha conquistado por completo a opinião do seu povo, não por meio de astúcias mas pela divina virtude, de tal maneira que se acreditava que ele era divino e que todas as suas palavras e actos eram inspirados por Deus, não pôde, mesmo assim, escapar aos boatos nem às mais sinistras interpretações”

Tratado Teológico-Político – Espinosa

Talvez não goste da introdução e aquilo que a mesma possa representar no momento actual. Porém, a verdade, é que há sons de tambores, de verbo alterado. Daí, que não me surpreenda a indignação de uns e o aplauso de outros - na co-relação, entre os vários poderes, onde assenta o Estado e por último, na primeira instância, a transcendência de Deus. O Deus comum visto de forma igual e interpretado por consequência cultural e histórica de diferentes formas.

Aquilo a que assistimos dá conteúdo e razão a Espinosa (escolho Espinosa por ser polémico, por ser alemão, filho de judeus, e por ter sido expulso da sinagoga por “blasfémia”. Tudo isto se passou entre 1632 e 1677. Longe o tempo do homem, filósofo, onde a sua obra desafiou os interesses do próprio pensamento no entendimento das religiões no seu contributo para a humanidade racional na questão entre Filosofia e Teologia, e entre ambas e a política. Espinosa foi perseguido pela Inquisição).

Repare no seguinte: a problemática do ensino da Religião nas escolas. Há uma Lei – aqui entendida como decisão suprema de Estado democrático, representativo do povo elegedor – através do seu Governo -, que é a não obrigatoriedade do ensino nas escolas públicas, da Religião e Moral. Agora repare nisto: a contestação popular é alimentada por uma interpretação errónea de quem fala em nome supostamente lesado, a Igreja Católica. Há aqui um erro de interpretação, por parte da Igreja Católica, na decisão do Governo, será uma “fuga” deliberada para a confusão espiritual com reflexo imediato ao nível social?

Espinosa disse, acerca da liberdade de expressão, num Estado livre, que suponhando “alguém demonstra que determinada lei é contrária à recta razão e, em consequência, julga que ela deve ser revogada; se esta pessoa submeter a sua opinião à apreciação dos poderes soberanos (a quem cabe em exclusivo promulgar e revogar as leis) e se abstiver, entretanto, de qualquer razão contrária ao que está prescrito na mesma lei, nesse caso, ela é, sem dúvida alguma, tão bom servidor do Estado como qualquer cidadão exemplar; mas se, pelo contrário, o fizer para acusar de iniquidade o magistrado e o tornar odioso aos olhos do vulgo, ou se tentar subversivamente revogar essa lei ao arrepio da vontade do magistrado, então, trata-se de um agitador, um rebelde”, percebeu a actualidade e a preocupação?

Pois bem, se a virtude da fé impera internamente no ser, logo é um direito absolutamente individual e não por imposição. A fé é algo que cada um de nós interfere interiormente e de forma diferente. Depois, depois há os agentes externos de uma ordem milenar de contradições inquisitórias, de defeitos processuais, de julgamentos fatais, de ritos ancestrais e até por vezes roçando a mais intransigentes formas de comandar. É também escola de virtudes humanas, temos muitos exemplos de homens bons de vocação tamanha, mas há os outros apanhados na fragilidade da matéria que está alterada pela tentação do corpo e da violência verbal e até física. O sacerdote, o homem de Deus foi um punidor por sua auto-recriação, em nome Dele sem que Ele o tivesse autorizado ou mandatado. Lembro o sofrimento de Jesus de Nazaré. A sua piedade, o seu perdão, o seu exemplo. Meu Deus, o que se passa por cá? A Igreja Católica não é um partido político e só dessa forma poderia interferir em assuntos de Governo e de Estado. A Igreja não é um Estado de Praxis, é um estado de espírito, de instrospecção, na pessoa à semelhança Dele, na sua busca de perfeição.

No fundo, é esta a grande questão que se opõe à razão absoluta do homem feito padre, missionário, pregador, ou simplesmente mestre explanador, tão somente homem; à luz da existência material como resultado do milagre do átomo – nós somos o resultado da junção de milhões, trilhões de átomos, de partículas, que se animaram e ao longo do tempo – da nossa existência individual, vão perdendo motivação.

“Cumprir a lei de Deus é praticar a justiça e a caridade segundo o mandamento divino”, diz Espinosa, e eu concordo em absoluto, que “é totalmente indiferente se Deus ensina e ordena o verdadeiro culto da justiça e da caridade por meio da luz natural ou da revelação. Não importa como esse culto é revelado, desde que ele assuma o carácter de direito supremo e seja suprema a lei dos homens”. Mais concordo quando o mesmo Espinosa afirma que “ se a justiça e a caridade não podem adquirir força de lei e de mandamento a não ser em virtude do direito de soberania, concluir-se-á facilmente, visto o direito de soberania ser da exlusiva alçada do poder supremo, que a religião só adquire força de lei por decreto de quem detenha a soberania e que Deus não exerce qualquer reinado especial sobre os homens a não ser por intermédio nos detentores do poder político”.

Para mim, tal como para Salomão, é impossível conceber o pecado no estado de natureza, ou sequer Deus como um juiz que castiga os homens pelos seus pecados. Não acredito que Deus seja punidor, Deus é a palavra pura, é o perdão. Salomão disse e bem que nesta questão “tudo se passa de acordo com as leis comuns a toda a natureza, estando sujeitos à mesma sorte o justo e o ímpio, o puro e o impuro”. Doutas e sábias, proféticas palavras.

Se uso Espinosa poderia enveredar mais profundamente pela Lei de Deus que depende exclusivamente do poder soberano dos homens. E já agora digo apenas que a história demonstra ser perigoso a supressão do Estado. Suprimido o Estado, nada de bom pode subsistir e tudo fica ameaçado, reinando apenas, por entre o medo geral, a cólera e a impiedade. Não há, portanto, qualquer dúvida pendente. O Estado é a legitimação prática dos cidadãos, sendo por conseguinte o seu intérprete máximo. Como tal, à luz da razão pura das coisas, a alteração à ordem será apenas mutação grotesca da realidade. O espiritual cultivado por cada um é obviamente caminho de Deus. Em cada um de nós reside uma esfera de concepção que descortina, mais tarde ou mais cedo, o caminho decidido divinamente. Será, porventura, uma lição de humildade sujeitarmo-nos à descoberta de nós mesmos através do mundo interior do reconhecimento uno, mas absoluto no divino. Essa descoberta é pessoal numa primeira fase e, posteriormente, orientada por decisão do próprio. Nunca por imposição, cuja negação resulta em julgamento de contorno inquisitório; (Por falar em inquisitório lembrei-me da exposição itinerante dedicada aos “instrumentos de Tortura da Inquisição”, a não perder, quem sabe se passará um dia por cá).
Mas, continuando. É esta a posição que defendo. Sê, primeiro, evangelizador da tua própria pessoa, só depois partes para o próximo quando te pedir indicações para o caminho – depois da descoberta por si. Só a Deus pertence o juízo final. O homem enquanto isso mesmo não pode ser vítima constante de um juízo final antecipado em vida, constantemente atemorizado pelo medo do Inferno.

O Estado timorense tem um desafio entre o utilitarismo vitoriano, a afirmação do pluralismo, o pragmatismo e o idealismo. No fundo aquilo que se passa é encontrar uma porta de entrada para a saida do existencialismo cristão de Kierkegaard que dizia que a “existência significa que se tem a liberdade de escolher quem se é, e isso significa viver um vida de empenhamento” e também que “todos os seres vivos estão condenados a viver vidas de incerteza e absurdo, empenhadas em subjectivar verdades que nunca podem ser provadas”.

A concorrermos com a desgraça da palavra, da forma como se encara nesta fase da discussão entre instituições, corremos o risco de cair na máxima do “anti-cristo”, o filósofo alemão Nietzshe disse um dia: “Deus está morto... e fomos nós que o matámos”. Eu acredito que Deus está vivo, é só deixar que se revele em cada um de nós. Seja onde for, mas no lugar ideal, no eu, residente em cada ser humano.

Sou cristão em Jesus de Nazaré, profeço o meu Deus e não foi através da catequese em criança, da primeira comunhão, do crisma ou dos encontros de paz em adolescente; foi precisamente através da minha percepção interior, onde me descobri por quem me criou e destinou. A palavra Dele foi-me dada a conhecer por Bíblia, depois cresci e também hoje a conheço por Corão. E que perdi eu se não apenas enriquecer a virtude de descobrir em mim a paz suficiente para O escutar e mesmo assim não deixar de ser pecador em busca do perdão que só eu mesmo posso alcançar?

Escolho a palavra humildade no reconhecimento dos papéis de cada um na sociedade que figuramos. Escolho a palavra respeito e pluralismo. Peço à Igreja Católica, de Timor-Leste, mais exemplo de modernidade. Recordo Sua Santidade, o Papa João Paulo II, tenho-o como guia, tal como outros líderes espirituais, que me transmitem paz e amor, que à luz do mesmo Deus, o interpretaram com religiões de outras designações. Chamo a paz à sociedade timorense e apelo ao bom senso. É que a continuarmos nesta toada começa a figurar-se o cenário de ingerência em assuntos de Estado e de governação. À luz da modernidade, o caminho é o da pluralidade absoluta, até no ensino das religiões e nunca apenas de uma só, em exclusividade. Que se ensine nas nossas escolas, em futuro currículo, o “Ensino das Religiões” em defesa do direito ao conhecimento e à diversidade interpretativa. Por tudo o que acima escrevo e por aquilo que estas páginas já não permitem, considero que é tempo de paz e de construção do Estado soberano de Timor-Leste. O poder político é vontade expressa do ser humano pensante e só o ser humano o pode alterar pela ordem da pratica democrática. Tal como na hierarquia da Igreja Católica. Imagine-se o que era o poder político, mundial ou individual, sugerir a demissão de um Papa no seu pontificado pela não alteração de valores defendidos em causa moderna, de comprovada antiguidade de pensamento?

Nunca se ouviu o Vaticano destratar uma Instituição apelidando-a de Governo este ou aquele, logo uma e outra coisa não pode ser confundida.

João Porventura no Jornal Nacional Semanario.

1 comentário:

  1. Spinoza nao e judeu alemao, mas sim judeu holandes, natural de Amsterdao. Quanto ao resto todo o texto constitui um ataque subtil mas virulento e injusto ao que se pretendia com a manifestacao de 2005. Sao pessoas com o autor deste artigo que estragam o trabalho a ser levado a efeito pela GNR.

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